Sadasiva Brahmendra é considerado um dos muitos homens santos que viveram na Índia, proferindo ensinamentos e realizando feitos extraordinários por onde passou. Conta uma história que certa vez ele caminhava num lugar onde habitavam islamitas, tendo sido confrontado por um deles que considerava uma afronta um homem nu andar por ali diante das mulheres. Sem receber a atenção que gostaria, o furioso islamita desfere um golpe de espada no indefeso Sadasiva, decepando um de seus braços. Porém, para espanto geral, o homem santo continua caminhando como se nada houvesse acontecido. Impressionado e arrependido, o islamita vai atrás de Sadasiva para entregar-lhe o braço cortado, sendo este calmamente recolocado no lugar por seu dono.
Diante do milagre, o islamita pede a ele um ensinamento, que veio através das seguintes palavras:
“Não faça o que quer, então poderá fazer o que preferir”.
Esta e outras histórias de Sadasiva estão no livro “Autobiografia de um Iogue”, de Paramahansa Yogananda. Mais versões da mesma história podem ser encontradas em outras fontes, como por exemplo, neste outro blog.
Chamo a atenção não para o suposto milagre, mas para a frase de Sadasiva, que sob uma ótica cármica e um tanto simplista, poderia ter sido direcionada especificamente ao seu algoz, como que dizendo: “não faça besteiras como a que acabou de fazer, assim evitará sofrimentos futuros dos quais não poderá escapar”. Mas será que aquela frase não guardaria um ensinamento mais amplo, estando suas palavras destinadas a atravessar gerações e perturbar mentes incautas com conselhos enigmáticos sobre a vida?
Muito se pode filosofar e discutir sobre questões como ego e desejos, que claramente se relacionam com o ensinamento de Sadasiva. Mas, para aqueles que como eu ainda tentam descobrir qual a melhor forma de viver, talvez o que mais incomode na recomendação de Sadasiva seja a postura aparentemente passiva, em claro contraste ao estilo de vida que predomina atualmente.
Afinal, seria melhor nada querer e simplesmente fluir com a vida, aproveitando as oportunidades que aparecem naturalmente? Ou devemos ir em busca de nossos sonhos e batalhar por eles?
Desde quando me deparei com as palavras de Sadasiva, tenho estado atento ao que outras fontes dizem sobre o tema. Uma das referências mais interessantes que encontrei, também a favor de uma atitude preponderantemente passiva, foi num dos relatos de Osvaldo Shimoda em seu livro "Experiências de regressão", quando uma paciente pergunta ao seu orientador espiritual:
— "Então, devo ficar de braços cruzados, não fazer nada para resolver meus problemas?"
Ao que o orientador surpreendentemente responde:
— "Você vai ficar sim! Não falei para confiar na vida? Por que é tão difícil confiar na vida? Você já foi atrás de tantas coisas que não deram certo. Por isso, não adianta ir contra a vida. Esteja certa de que ela se encarregará de trazer o que é seu. Você não está de braços cruzados. De uma maneira ou de outra, está se movimentando, embora não perceba. Não queira que as coisas sejam do jeito e no tempo que você quer. Você não manda na vida. Seja humilde e aceite o que a vida tem para lhe dar."
Ou seja, a vida é retratada aqui como um ente que de alguma forma se encarrega de trazer pessoas e situações que sejam pertinentes à nossa condição evolutiva, cabendo a nós ter paciência, viver o momento presente e lidar da melhor maneira possível com aquilo que gradativamente chega até nós. O psiquiatra Viktor Frankl também dizia em seu livro "Em Busca de Sentido" que "viver não significa outra coisa que arcar com a responsabilidade de responder adequadamente às perguntas da vida, pelo cumprimento das tarefas colocadas pela vida a cada indivíduo, pelo cumprimento da exigência do momento".
Essa "inteligência vital" seria algo bem mais capaz do que nós mesmos de entender o que precisamos e merecemos, e de saber como transformar tudo isso em realidade diante de nós. Claro, podemos usar nosso livre-arbítrio, desviar do rumo natural das coisas e ir atrás do que bem entendermos, mas nossa ignorância sobre nós mesmos e sobre as leis naturais tenderia a produzir apenas atraso e desperdício. De qualquer forma, tudo isso não fará muito sentido se não conseguirmos reconhecer nenhum traço dessa inteligência vital conspirando a nosso favor ao longo da vida. Sem a força da comprovação por experiência própria, fica muito difícil sustentar tais reflexões apenas com palavras. Quanto a mim, ao recordar alguns momentos vejo tudo isso como uma possibilidade real, embora colecione mais dúvidas do que certezas.
Voltando a uma perspectiva espiritualista, também encontrei a seguinte afirmação no livro "Reforma íntima sem martírios", do espírito Ermance Dufaux, que acrescenta o tempero do "dever" ao tema:
"A solução (para o progresso espiritual) está na aplicação de intenso regime disciplinar dos desejos, deixando de fazer o que gostaríamos e não devemos, e fazendo o que não gostaríamos, mas é o dever."
Aqui não há menção sobre forças externas capazes de direcionar nossas vidas, muito menos recomendação de passividade. Pelo contrário, se de maneira geral estaríamos todos inclinados a gostar de coisas que não nos fazem bem, é necessário esforço para mudar nosso comportamento, controlar nossas más tendências, disciplinar pensamentos, palavras e ações com base na noção do que seria correto. Ou seja, sim, refrear nosso querer, porém estimular o dever.

Yogananda viu nas palavras de Sadasiva um “roteiro para libertação espiritual através do controle do ego” — por mais que Sadasiva pareça recomendar o verdadeiro sepultamento deste. Mas afinal, será que todos os desejos provem do ego? Se desconsiderarmos desejos banais, supérfluos, normalmente inoculados pela sociedade e pela mídia, temos também desejos mais profundos, que podem nos acompanhar por toda a vida. Desejos dignos, supostamente defensáveis, que podem ser de realização profissional, familiar e inclusive espiritual. Desejos de felicidade, saúde, paz, prosperidade, etc. Mas afinal, quando surge um desejo — até mesmo destes mais elevados — será que deveríamos invariavelmente contê-lo, como parece recomendar Sadasiva? E ao contê-lo, como não se arrepender depois? Sadasiva, mesmo após atingir o estado que o levou a ser considerado homem santo, não pode ser visto como um indivíduo totalmente passivo. Afinal, até para meditar é preciso querer (e como!). Por trás de todos os seus atos, extraordinários ou não, foi preciso algum tipo de vontade propulsora. Assim, se descartarmos a passividade total como caminho, a chave talvez esteja em saber distinguir entre inofensivas escolhas e desejos a serem evitados.

Talvez o preferir de Sadasiva seja um querer mais leve, sem preocupação, sem ansiedade, sem busca incessante, sem espaço para frustração. Não por medo de sofrer, pois como bem disse Huberto Rohden em seu livro "De Alma para Alma", por saber que nada nem "ninguém na vida te pode fazer infeliz — a não ser tu mesmo. Tu é que tens nas mãos as chaves do céu e do inferno... A felicidade não está na periferia da tua vida — está no centro do teu ser". Sob este prisma, quem sabe ao menos os desejos mais nobres ou altruístas sejam aceitáveis, desde que não sejamos escravizados por eles.
Certa vez levantei este mesmo tema num grupo espiritualista, mencionando a frase de Sadasiva. Após longa discussão, ao final, como é de praxe ali, fui solicitado a abrir "O Evangelho segundo o Espiritismo" numa página aleatória. É possível que a superação do ego recomendada por Sadasiva esteja de alguma forma alinhada com as palavras bíblicas de Jesus que encontrei naquela página: "Se alguém quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me." (Matheus 16:24)
E então? Estaremos preparados para a morte do ego?
Em que nos transformaremos depois disso?
Diante do milagre, o islamita pede a ele um ensinamento, que veio através das seguintes palavras:
“Não faça o que quer, então poderá fazer o que preferir”.
Esta e outras histórias de Sadasiva estão no livro “Autobiografia de um Iogue”, de Paramahansa Yogananda. Mais versões da mesma história podem ser encontradas em outras fontes, como por exemplo, neste outro blog.
Chamo a atenção não para o suposto milagre, mas para a frase de Sadasiva, que sob uma ótica cármica e um tanto simplista, poderia ter sido direcionada especificamente ao seu algoz, como que dizendo: “não faça besteiras como a que acabou de fazer, assim evitará sofrimentos futuros dos quais não poderá escapar”. Mas será que aquela frase não guardaria um ensinamento mais amplo, estando suas palavras destinadas a atravessar gerações e perturbar mentes incautas com conselhos enigmáticos sobre a vida?
Muito se pode filosofar e discutir sobre questões como ego e desejos, que claramente se relacionam com o ensinamento de Sadasiva. Mas, para aqueles que como eu ainda tentam descobrir qual a melhor forma de viver, talvez o que mais incomode na recomendação de Sadasiva seja a postura aparentemente passiva, em claro contraste ao estilo de vida que predomina atualmente.
Afinal, seria melhor nada querer e simplesmente fluir com a vida, aproveitando as oportunidades que aparecem naturalmente? Ou devemos ir em busca de nossos sonhos e batalhar por eles?
Desde quando me deparei com as palavras de Sadasiva, tenho estado atento ao que outras fontes dizem sobre o tema. Uma das referências mais interessantes que encontrei, também a favor de uma atitude preponderantemente passiva, foi num dos relatos de Osvaldo Shimoda em seu livro "Experiências de regressão", quando uma paciente pergunta ao seu orientador espiritual:
— "Então, devo ficar de braços cruzados, não fazer nada para resolver meus problemas?"
Ao que o orientador surpreendentemente responde:
— "Você vai ficar sim! Não falei para confiar na vida? Por que é tão difícil confiar na vida? Você já foi atrás de tantas coisas que não deram certo. Por isso, não adianta ir contra a vida. Esteja certa de que ela se encarregará de trazer o que é seu. Você não está de braços cruzados. De uma maneira ou de outra, está se movimentando, embora não perceba. Não queira que as coisas sejam do jeito e no tempo que você quer. Você não manda na vida. Seja humilde e aceite o que a vida tem para lhe dar."
Ou seja, a vida é retratada aqui como um ente que de alguma forma se encarrega de trazer pessoas e situações que sejam pertinentes à nossa condição evolutiva, cabendo a nós ter paciência, viver o momento presente e lidar da melhor maneira possível com aquilo que gradativamente chega até nós. O psiquiatra Viktor Frankl também dizia em seu livro "Em Busca de Sentido" que "viver não significa outra coisa que arcar com a responsabilidade de responder adequadamente às perguntas da vida, pelo cumprimento das tarefas colocadas pela vida a cada indivíduo, pelo cumprimento da exigência do momento".
Essa "inteligência vital" seria algo bem mais capaz do que nós mesmos de entender o que precisamos e merecemos, e de saber como transformar tudo isso em realidade diante de nós. Claro, podemos usar nosso livre-arbítrio, desviar do rumo natural das coisas e ir atrás do que bem entendermos, mas nossa ignorância sobre nós mesmos e sobre as leis naturais tenderia a produzir apenas atraso e desperdício. De qualquer forma, tudo isso não fará muito sentido se não conseguirmos reconhecer nenhum traço dessa inteligência vital conspirando a nosso favor ao longo da vida. Sem a força da comprovação por experiência própria, fica muito difícil sustentar tais reflexões apenas com palavras. Quanto a mim, ao recordar alguns momentos vejo tudo isso como uma possibilidade real, embora colecione mais dúvidas do que certezas.
Voltando a uma perspectiva espiritualista, também encontrei a seguinte afirmação no livro "Reforma íntima sem martírios", do espírito Ermance Dufaux, que acrescenta o tempero do "dever" ao tema:
"A solução (para o progresso espiritual) está na aplicação de intenso regime disciplinar dos desejos, deixando de fazer o que gostaríamos e não devemos, e fazendo o que não gostaríamos, mas é o dever."
Aqui não há menção sobre forças externas capazes de direcionar nossas vidas, muito menos recomendação de passividade. Pelo contrário, se de maneira geral estaríamos todos inclinados a gostar de coisas que não nos fazem bem, é necessário esforço para mudar nosso comportamento, controlar nossas más tendências, disciplinar pensamentos, palavras e ações com base na noção do que seria correto. Ou seja, sim, refrear nosso querer, porém estimular o dever.

Yogananda viu nas palavras de Sadasiva um “roteiro para libertação espiritual através do controle do ego” — por mais que Sadasiva pareça recomendar o verdadeiro sepultamento deste. Mas afinal, será que todos os desejos provem do ego? Se desconsiderarmos desejos banais, supérfluos, normalmente inoculados pela sociedade e pela mídia, temos também desejos mais profundos, que podem nos acompanhar por toda a vida. Desejos dignos, supostamente defensáveis, que podem ser de realização profissional, familiar e inclusive espiritual. Desejos de felicidade, saúde, paz, prosperidade, etc. Mas afinal, quando surge um desejo — até mesmo destes mais elevados — será que deveríamos invariavelmente contê-lo, como parece recomendar Sadasiva? E ao contê-lo, como não se arrepender depois? Sadasiva, mesmo após atingir o estado que o levou a ser considerado homem santo, não pode ser visto como um indivíduo totalmente passivo. Afinal, até para meditar é preciso querer (e como!). Por trás de todos os seus atos, extraordinários ou não, foi preciso algum tipo de vontade propulsora. Assim, se descartarmos a passividade total como caminho, a chave talvez esteja em saber distinguir entre inofensivas escolhas e desejos a serem evitados.

Talvez o preferir de Sadasiva seja um querer mais leve, sem preocupação, sem ansiedade, sem busca incessante, sem espaço para frustração. Não por medo de sofrer, pois como bem disse Huberto Rohden em seu livro "De Alma para Alma", por saber que nada nem "ninguém na vida te pode fazer infeliz — a não ser tu mesmo. Tu é que tens nas mãos as chaves do céu e do inferno... A felicidade não está na periferia da tua vida — está no centro do teu ser". Sob este prisma, quem sabe ao menos os desejos mais nobres ou altruístas sejam aceitáveis, desde que não sejamos escravizados por eles.
Certa vez levantei este mesmo tema num grupo espiritualista, mencionando a frase de Sadasiva. Após longa discussão, ao final, como é de praxe ali, fui solicitado a abrir "O Evangelho segundo o Espiritismo" numa página aleatória. É possível que a superação do ego recomendada por Sadasiva esteja de alguma forma alinhada com as palavras bíblicas de Jesus que encontrei naquela página: "Se alguém quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me." (Matheus 16:24)
E então? Estaremos preparados para a morte do ego?
Em que nos transformaremos depois disso?
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