quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Variações do buraco

Durante a pandemia, eu e minha esposa tivemos o duplo privilégio de poder nos isolar no sítio e seguir trabalhando remotamente. Aliás, com muito mais trabalho a fazer, pois não havia possibilidade de pedir comida e também evitamos ao máximo trazer pessoas para nos ajudar. Ou seja, além do trabalho remoto, também tivemos que cuidar praticamente sozinhos dos afazeres da casa e do campo. Mas, como ninguém é de ferro, era comum jogarmos partidas de buraco ao final do dia.

Jogos de cartas como o buraco possuem muitas facetas interessantes, pois funcionam como um pequeno laboratório da vida. Neles fica bem claro nosso limitado controle sobre as situações. E a cada decisão tomada, há que se arcar com as consequências. Bem disse Schopenhauer, desta vez transpondo a analogia do baralho para a vida: “Deus baralha as cartas e nós jogamos”. Além disso deve-se aprender a conviver com vitórias e derrotas. Evitar a soberba e o escárnio na vitória, e não se deixar abater nas derrotas. Vez ou outra não simples derrotas, mas verdadeiros massacres.

Devo confessar que a frequência e a intensidade dos altos e baixos do buraco jogado na sua forma tradicional várias vezes me incomodaram. Descobri que, assim como não é agradável perder feio, ou perder várias vezes seguidas, também não é agradável estar do lado oposto e ver quem você ama nessas condições. Assim, tratei de imaginar variações na forma de jogar que pudessem tornar a peleja mais equilibrada, introduzindo conceitos e valores numa tentativa de extrapolar ao menos um pouco o mero egoísmo de preocupar-se apenas com o próprio jogo. Compartilho aqui duas variações que talvez possam interessar a outras pessoas que também estejam em busca de formas alternativas de jogar.

Buraco amigo


Esta modalidade acrescenta as seguintes regras ao buraco tradicional:

  1. Antes de pegar o morto, é necessário baixar um jogo na mesa do adversário com pelo menos uma rodada de antecedência.
  2. Antes de bater, também é necessário baixar outro jogo na mesa do adversário com pelo menos uma rodada de antecedência.
  3. Jogos cedidos devem juntar-se a jogos pré-existentes caso formem uma sequência perfeita (exemplo: ao ceder uma trinca de seis, se o adversário já possuir uma trinca de seis, o jogo cedido deve integrar-se ao jogo pré-existente).

Com essas regras, quem perder irá na pior das hipóteses terminar a partida com dois jogos na mesa, tendo também a oportunidade de baixar eventuais pontos retidos na mão ao receber o segundo jogo cedido pelo adversário — verdadeiro alerta de bate iminente. Assim, praticamente elimina-se a possibilidade de massacres acachapantes nos quais perde-se o jogo sem nenhum descarte e com todas as cartas na mão. Além disso, surge a novidade de ter que ceder algo ao adversário, numa espécie de “generosidade forçada”. Claro que, ao ceder um jogo, escolhe-se aquele com menor valor de carta, menor possibilidade de evolução para canastra, e preferencialmente com coringa para evitar canastras reais. Mas mesmo assim esses jogos podem evoluir para canastras, conforme comprovamos várias vezes.

Buraco comunitário


Nesta modalidade, além das áreas de descarte de cada jogador, temos uma terceira área de descarte denominada “área comunitária”. A área comunitária pode ser utilizada por ambos jogadores, e sua pontuação é dividida igualmente entre os dois. Ou seja, na prática ignora-se a pontuação da área comunitária. Faz-se portanto necessário um “estímulo” para descartar neste novo local. Outra novidade são quatro mortos de oito cartas, ao invés dos tradicionais dois mortos de onze. Utilizam-se as seguintes regras sobre as tradicionais:

  1. Para pegar o primeiro morto é necessário baixar um jogo na área comunitária.
  2. Para pegar o segundo morto é necessário baixar outro jogo na área comunitária.
  3. Para bater é preciso ter uma canastra na sua própria área de descarte e outra na área comunitária.
  4. Para efeito de contagem, perdem-se 80 pontos a cada morto não utilizado.

O objetivo neste caso foi o de introduzir o jogo conjunto dentro da competição do jogo tradicional, tendo também como efeito uma partida mais duradoura, reforçando a percepção de que o jogar em si pode ser mais prazeroso que o resultado final.

Variações como essas podem certamente evoluir para outras formas ainda mais criativas e inovadoras de jogar, quem sabe até estimulando atitudes e características mais nobres do ser humano.


Nota: As duas variações apresentadas foram pensadas e testadas apenas com dois jogadores. Mas creio ser possível utiliza-las com mais pessoas.

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